20.5.06

2 Contos de Terror

por Breno Fernandes,
graduando em Comunicação Social pela UFBa



A Marca

Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
Embuçado nos céus?

Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...

(Vozes D'África. Castro Alves)



Porque a verdade é esta, meu querido: Deus, o seu benevolente Deus, não passa de um sádico. E é a nós que ele impinge sofrimento - a nós! Fomos criados no intuito único de diverti-lo com nossa fragilidade, sofrimento, nossos medos e crenças tolas (incluindo-se aí a de que ele está sempre a nos ajudar). Para tal, fomos feitos assim: com inteligência limitada e presunção infinita. Mas Lúcifer se apiedou de nós, meu querido. Sim, acredite! Ele, antes o melhor amigo de Deus, tornou-se seu arquiinimigo pelo direito de nos defender. Por isto foi expulso do Paraíso, junto com todos que tinham a mesma opinião. E por isto perderam o poder sobre nossas vidas. Contudo, pouco antes desta cisma, mas já a antevendo, os Anjos Caídos desceram à Terra e copularam com algumas mulheres, a fim de gerar descendentes que pudessem interferir no parque de diversões divino. Todos os filhos destas mulheres nasceram marcados, assim como os filhos destes filhos, e assim por diante. Vê esta marca aqui em meu braço? É a marca! Eu sou um deles, um dos poucos capacitados para livrar meus irmãos das garras de Deus. Portanto, meu querido, este é um momento de glória: mais uma etapa de minha árdua missão está sendo cumprida. Dou-lhe um beijo fraterno agora, enquanto cravo cada vez mais fundo esta lâmina em teu peito. Ela é a tua salvação. É o único jeito; o único jeito...




---------------------------------------------------------------



Orô

Era uma vez um grande caçador,

que gostava de andar pelo mundo sem parar.

Seu nome era Orô

e era filho de Iemanjá.


O mundo todo parecia inclinado 45° para a direita, e coincidentemente já fazia 45 minutos que a fila do acarajé empacara. Tinha vontade de abandoná-la, mas alguém que passara o dia todo bebendo, sem comer, precisava de um acarajé para continuar bebendo.

Além do mais, sua posição era totalmente favorável para que aquele cara de braços nus, nariz adunco e rosto meio encoberto pelo cabelo grande e barba cerrada continuasse a lhe fitar. A lhe secar, melhor dizendo -- a lhe comer com os olhos!

E também para que o outro, com quem ela viera, e com quem acabara de brigar, visse que ela não lhe dava a mínima; que, para ela, ele era completamente substituível.


Orô viajada, caçava

e conquistava seus amores.

Todas as mulheres tinham uma queda por Orô

e ele adorava estar em sua companhia.

Um dia Orô achou que era hora de assentar na vida.

Orô casou-se.

Era então o caçador pacato,

que esperava ansioso o nascimento do seu primogênito.


Foi tudo muito rápido. O barbudo se aproximou, lhe estendeu o copo, lhe ofereceu um cigarro e lhe convidou, numa voz rouca, para comer crepes, ali no Rio Vermelho mesmo, num lugar próximo e tão badalado quanto a Dinha.

Quando passaram pelo outro, ela fez questão de agarrar o braço musculoso do seu novo acompanhante e elogiar sua bonita tatuagem, uma espécie de berrante.


Mas sua mulher o traiu

e abortou seu filho.

Orô não a perdoou

e desde então odiou as mulheres.

Retirou-se para as matas que cercavam a cidade

e nunca mais mulher alguma o viu.


-- Badalado, hein? -- um riso safado, destes secretos, que só o álcool pode libertar de dentro de alguém, ela esboçou, enquanto mordia o lábio do estranho com volúpia.

Não sabia dizer onde estavam. Em alguma ruela do bairro, deserta, escura, encostados em uma árvore centenária.

-- Vai dizer que você não gostou? -- disse, ao seu ouvido, num sussurro. -- Vai ser inesquecível.

Aquele homem parecia um gigante; para cima ou para os lados, só via seu corpo, estendendo-se até o horizonte. Suas mãos seriam capazes de lhe envolver como um casulo, e foi justamente o que ele fez. As roupas se rasgaram: era a hora da borboleta. Ele a ergueu; um primeiro incentivo para um vôo bem-sucedido. Com as pernas e braços presos às costas dele, ela descia e subia, descia e subia, voando, voando, talvez já próxima à lua -- se fosse noite de lua.

O orgasmo veio e destronou todos os sentidos, para reinar impávido naquele corpo. Sim, era mesmo um soberano: o soar de berrantes não deixavam dúvida. Abram caminho para o rei!

Então ela se viu refletida em duas estrelas pairadas dentro da escuridão da copa da árvore centenária. E se aproximavam cada vez mais, com um barulho cavernoso. Ela sentiu um medo tão grande que suas asas cairam; voltou a ser uma simples lagarta, agora desprotegida. Não, não eram estrelas, e sim os olhos vorazes de um pássaro assassino, mergulhando em sua direção. Um pássaro de presas?

A pobre lagarta levou as mãos em frente ao rosto, tentando ocultar de si o que cria sem muita certeza se tratar de uma alucinação.

E foi puxada.


Quem de Orô se aproxima, de dia ou de noite,

pode escutar sua voz cavernosa e horripilante,

grave como o som dos berrantes.

(...)

e todos o temem e o evitam.

Evitam até mesmo ouvir o pavoroso som de sua garganta,

especialmente as mulheres, que ele odeia

e culpa por sua triste sina.

Vive na mata, onde aplica sua justiça,

devorando feiticeiros,

criminosos condenados

e mulheres adúlteras que os homens lhe entregam.



***


Na sua voz rouca, ele cantou uma canção em iorubá até que os berrantes se calaram. Passada a fascinação do momento, ele acendeu um cigarro e se pôs a caminhar lentamente, sem rumo. Agora se sentia melhor. Prestara homenagem ao seu orixá, cujo símbolo -- o berrante -- levava tatuado com orgulho. Fizera seu ebó. E para Orixá Orô, cuja melhor oferenda é a que mais aumenta sua ira, nada mais apropriado que uma mulher.




---------------------------------------


PRANDI, Reginaldo. Orô é traído pela mulher e se afasta do mundo. In: Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras (2001): pp. 186,187.

1 Comments:

At 24/5/06 15:21, Anonymous Anônimo said...

Excelente historias, mas n diria de terror, mas cercadas de intrigas e revelaçoes...grande B., hahaha, abraços!

 

Postar um comentário

<< Home